quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Os lugares revisitados por uma jornalista

Cada vez que passo em Gouxaria, Alcanena, o pensamento foge-me para aquele casal que perdeu o filho de 20 anos, pouco tempo antes do Natal de 2008, numa recta mal calculada em plena Serra de Santo António. Antes de me contar o que aconteceu, uma mãe banhada em lágrimas insistiu em mostrar-me os objectos do filho. Respeitei o seu momento de luto e acabei por passar uma tarde de domingo chuvosa com alguém que não conhecia de lado nenhum mas que partilhou comigo toda a dor que sentia. Cada vez que vou a Alqueidão de Santo Amaro, Ferreira do Zêzere, lembro-me que ali mora, numa casa térrea com um bonito jardim, uma jovem mãe que deu o fígado ao seu filho para que este não perdesse a vida e o mima com todas as forças que tem. Sempre que passo na A23 vinda de Abrantes para Torres Novas sei que, algures por ali, morreu num acidente de automóvel uma jovem numa madrugada de temporal. E reduzo a velocidade por momentos.

Por mais que não queira, acabo sempre por revistar os lugares por onde passo, e volto a passar, com as reportagens que mais marcaram e que o tempo não apaga como faz com muitas outras. Pergunto-me se isto também acontece com os meus colegas de profissão? Ainda não sei porquê mas a memória teima em guardar mais histórias tristes do que alegres. Por isso ainda não esqueci cada vez que passo no Tramagal, Abrantes, que ali mora uma mulher com a filha de sete anos numa barraca sem água nem luz à espera que vague uma habitação social. Ou que vi homens de barba feita a chorar na primeira greve que se realizou na construtora João Salvador, em Tomar.

Mas, nem tudo são tristezas e há também lugares que me despertam sorrisos numa segunda visita. Sempre que regresso ao centro histórico de Abrantes é impossível não me lembrar de que já ali estive com um burro naquele que foi o protesto mais insólito que acompanhei. E como não me lembrar dos dois sacos de laranjas que o senhor Serafim Luís Homem, morador em Limeiras, Vila Nova da Barquinha, fez questão de me oferecer quando o fui ouvir tocar violino em sua casa? Do espirituoso “Encontro de Gémeos”, organizado pela paróquia da Sagrada Família, que fui assistir no Entroncamento ou da festa que o grupo de pessoas que se juntam todos os anos para cantar os Reis em Montalvo, Constância, fez quando viu a carrinha de O MIRANTE a chegar? São estas experiências tão distintas, e vividas quase ao ritmo diário, que fazem com que ainda continue a achar que tenho o privilégio de ter uma das profissões mais bonitas do mundo.

Crónica publicada na edição de aniversário 16 de Novembro de 2009

3 comentários:

Paulo Sousa disse...

Um jornalista é um coleccionador de histórias. Más e boas.
Que também deve saber contá-las.
Pode ser uma mão amiga, um ouvido, uma ajuda, uma esperança e sobretudo um ser humano.
Bela crónica esta (que aliás já tinha lido em papel).

erg disse...

obrigada, Paulo.

O Navegante disse...

Quem tem esta profissão (jornalista), vive situações, que é muito difícil conter o deslizar de uma lágrima na face, acabando esta, por colocar uma “nódoa negra”, quando cai no caderno de apontamentos, misturando-se com a “tinta preta da ferramenta de trabalho”.
Por vezes medito, que o repórter é como o bombeiro ou o socorrista. Estes travam a luta do salvamento, enquanto o repórter “trava a luta” da emoção vivida em situações dramáticas como estas que você “retrata” no “seu” jornal.
Mas para compensação, a vida não é constituída só por tristezas, há a outra face para o equilíbrio, como aquela do “jerico a passear pelas ruas históricas da cidade”…
Ou com uma lágrima a deslizar na sua face, se não conseguir retê-la, ou com um sorriso de expressão feliz, continue consistente, nesta sua profissão tão nobre, que você escolheu para a sua vida.
A.A.