quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Artistas no Outono da vida

São três senhoras distintas mas têm algo em comum: quando descobriram que tinham talento para as artes já os seus cabelos se encontravam cheios de cãs. O MIRANTE foi conhecê-las e dá a conhecer os trabalhos de três artistas autodidactas da região.

Marlene Mendes, 66 anos: Arte com Tradição



Os trabalhos de Marlene do Céu Lopes Mendes, 66 anos, encontram-se actualmente expostos na Biblioteca Municipal de Ferreira do Zêzere, terra de onde é natural e pela qual assume uma ligação profunda. Retratos a carvão, onde se destaca o seu e o do neto Francisco de 12 anos, quadros bordados em linho que pela sua precisão mais parecem telas pintadas a óleo, originais artigos decorativos feitos a partir de materiais recicláveis como pinhas, escamas de peixe ou cascas de nozes são alguns exemplos do que se pode ver na mostra desta artista autodidacta, que tem apenas a 4.ª classe. Telefonista da Câmara Municipal de Ferreira do Zêzere durante 35 anos, Marlene Mendes reformou-se há cerca de dois meses e desde então sobra-lhe mais tempo para se dedicar aquilo que só descobriu que sabia fazer com 60 anos: desenhar retratos. Para bordar a linho, arte que aprendeu com doze anos, já sabia que tinha mão. No seu portfólio conta já 60 quadros bordados a linho e quinze retratos. Diz que herdou o talento da avó “que já fazia com as mãos coisas que não via em mais lado nenhum”.
Marlene Mendes gostava de desenhar e nas horas mortas de trabalho costumava rabiscar mas não se aventurava por ali além. Até que as colegas de serviço a desafiaram a fazer retratos. “Comecei por fazer o meu retrato. Se ficasse mal ria-me de mim própria”, confessou. O resultado agradou a quem mostrou o trabalho e nem o presidente da câmara, Luis Ribeiro, escapou. Depois nunca mais parou e já teve, inclusivé, um quadro, que simboliza uma rua de Paio Mendes, em exposição na Assembleia da República. Também já expôs em Tomar e viu dois dos seus quadros irem parar a Moreni, na Roménia, cidade geminada com Ferreira do Zêzere.
A ferreirense recorda que a arte entrou “mais a sério” na sua vida num período em que se encontrava de baixa, à conta de uma depressão. Foi nessa altura que tentou que os seus bordados em linho parecessem o mais possível com pinturas. O primeiro quadro que bordou foi retirado do livro de poesia “Tojos e Rosmaninhos” de Alfredo Keil. “Quis associar a história do concelho à minha arte”, explica, salientando que a mensagem principal que os seus trabalhos trespassam é o amor que tem à sua terra e às pessoas que nela vivem. Não lamenta o facto de ter deixado passar ao lado uma carreira artística. “Os tempos eram outros e não tinha disponibilidade de tempo que tenho agora. Quero ensinar a minha arte e criar outro tipo de artesanato para a vila”, remata.

Maria Flores, 82 anos: Arte com História



História e Música são as paixões de Maria Flores, 82 anos, que foi durante toda a vida operadora de caixa, andando às volta com contas e números quando na sua cabeça tinha tintas e pincéis. Natural de Tomar, Maria Flores realizou a proeza de pintar a guache as várias dinastias representativas dos Reis de Portugal, que guarda num dossier por ordem cronológica. Noutro dossier tem guardado os desenhos a lápis de carvão das principais figuras da História de Portugal. Ali não faltam os retratos fidedignos de Fernando Pessoa, Samora Marechal, D. Duarte de Bragança, Mário Soares ou Cavaco Silva. Tem apenas a 4.ª classe e nunca tirou nenhum curso relacionado com artes. Á desconfiança começou por desenhar D. Afonso I. “Pensei que se tinha conseguido desenhar este Rei também conseguia desenhar os outros”, refere. Se bem o pensou, melhor o fez. Tirou a as imagens de livros, selos, cromos e outras da sua imaginação, através do que lia sobre o comportamento dos monarcas. Apesar de o ter feito já depois dos 60 anos, Maria Flores recorda que desde criança sente o chamamento pelas artes. “Em pequena ofereceram-me uma caixa de lápis de cor e dormi com ela debaixo da almofada”, recorda. Nas paredes de sua casa, em Marmelais de Baixo, podem-se ver quadros pintados a óleo com a temática da cidade. Um dos últimos que pintou representa o jardim do Convento de Cristo. Mais recentemente fez o brasão para a Santa Casa da Misericórdia de Ferreira do Zêzere. Todo ele emanou da sua imaginação. Utente do Centro de Dia do Lar Nossa Sra da Graça, situado ao lado de sua casa, Maria Flores ocupa parte do seu tempo a desenhar e a pintar. Como tal, dá por si a passar para o papel cenas que presencia no quotidiano. “Gosto muito e hei-de continuar até poder”, assegura.

Clotilde Raposo, 79 anos: Arte com Sentimento



Genuína, emocional e com uma sensibilidade acima do comum. É assim Clotilde Lopes Raposo, 79 anos, artista autodidacta que descobriu que tinha talento para as artes há apenas sete anos. Pode-se dizer que foi a melancolia que a fez acordar o talento para as artes, contava já 72 anos. Estava na sua casa, em Vila Moreira, Alcanena, e sentia-se triste, muito triste. Foi por instinto que olhou para a fotografia da filha, de olhos meigos e tranças louras, pousada em cima do móvel e lembrou-se de a desenhar num pedaço de papel que ali se encontrava ao lado. Quando acabou ficou espantada com o que tinha conseguido fazer: “Disse a mim própria: Ah! Isto até ficou bem”, recorda. Entusiamada com a descoberta, mandou comprar tintas e pincéis e pôs-se a desenhar tudo o que via, fosse um objecto na sua casa, fosse um quadro numa revista, fosse uma imagem na televisão. Muitas vezes madrugada dentro, mergulhada na solidão.”Tenho mais tendência para os retratos ou para pintar paisagens mas só aquelas que são mais fora do comum”, explica. Inicialmente não mostrava os trabalhos a ninguém. Por receio que não fossem nada de jeito. Mas certo dia mostrou a uma amiga mais entendida em arte que lhe disse que aquilo estava muito bom e teria de ser mostrado ao mundo.Telas sucederam a telas e há cerca de cinco anos, e depois de ter organizado algumas exposições em várias regiões, destacando a que esteve no posto de turismo de Fátima e que foi vista por milhares de peregrinos, abriu uma Galeria na sua terra, a poucos metros de casa, onde tem expostas dezenas de obras a aguarela, óleo, pastel e carvão.
Clotilde Raposo parou de pintar há quatro anos quando o filho faleceu, aos 53 anos, num acidente de viação. A vontade de pintar morreu nesse dia também. Premonitoriamente, o último quadro que pintou retratava um mar revolto anunciando uma tempestade. A alma de artista fala mais alto e ganha novos contornos: o da escrita. Palavras, sobretudo, que reflectem pensamentos provindos do coração dilacerado de uma mãe que não entende porque o filho partiu antes dela. Palavras de Dor.
Clotilde Raposo é, acima de tudo, autêntica. Por isso na hora de tirar a foto, não sorri. Porque o sorriso não espelha o que lhe vai na alma. Na sua alma de artista.

Elsa Ribeiro Gonçalves