sábado, 18 de abril de 2009

Uma tradição com cruzes para evocar a ressurreição de Cristo





Na “Matança dos Judeus” em Cem Soldos, Tomar, as pessoas mais velhas transportam canas mais altas para que os mais jovens não esqueçam a importância da tradição da terra que já conta mais de cinco séculos.


Os sinos tocam a repique a anunciar a Ressurreição de Cristo. Ainda não são dez da manhã e pelas ruas de Cem Soldos, freguesia da Madalena, em Tomar, já se ouve: “Aleluia, Aleluia. Já ressuscitou o Nosso Senhor”. O pároco não participa. A frase é repetida até à exaustão por gente de todas as idades, em passo rápido. Vozes que vão ficando roucas à medida que o tempo passa. Os rapazes e os homens levam nas mãos cruzes feitas em cana verde, enfeitada com flores campestres como a aleluia, goivos, malmequeres, lírios ou jarros. As raparigas e mulheres levam as mesmas flores em ramo. No meio da multidão que se desloca em magote, e que durante hora e meia percorre todas as ruas da aldeia, destacam-se duas canas pela extravagância das suas dimensões e que, devido aos fios eléctricos, exigem redobrada atenção por parte de quem as transporta.Uma tem seis metros e meio, outra pouco menos. Mas no cortejo encontram-se canas floridas de todos os tamanhos.

Carlos Godinho é um dos veteranos do “Cortejo das Cruzes” que sai à rua todos os anos no Domingo de Páscoa em Cem Soldos e que termina com um ritual denominado “A matança dos Judeus”, no qual as canas e os ramos são destruídos no portal da igreja da aldeia. É dele a cana mais alta, recolhida de véspera num canavial das redondezas e que demorou uma tarde a ficar pronta. A técnica é simples mas requer concentração: com um canivete limpa-se a cana, mete-se um arco em fio ou arame para colocar as flores de várias qualidades que foram separadas em raminhos e que, confessa, são apanhadas no campo ou “roubadas” em quintais de vizinhos. A cana em questão foi isolada, de propósito, de outras para que pudesse atingir tamanha dimensão. “Um incentivo para que os mais novos reconheçam a importância desta tradição”, explica a O MIRANTE. Atento à conversa, Horácio Mourão segura a sua cana de 5 metros e meio. Também ele se entregou de corpo e alma à elaboração da sua cana, a mesma que no final da procissão vai destruir num ápice e com grande destreza em frente à igreja de S. Sebastião. Não o incomoda tanto trabalho para nada. A tradição fala mais alto.

Ornamentação das canas é pretexto para o convívio

Os jovens que encabeçam a procissão são os que completam 20 anos este ano. Jovens que noutros tempos estariam no ano “das sortes”, ou seja, o ano em que iriam fazer a inspecção militar, explica Francisca Costa. Mas, nos dias que correm, o grupo é constituido por rapazes e raparigas, apelidados por “pessoal do ano”. O rapaz mais velho do ano leva uma cruz e os restantes pequenos sinos, vestindo as opas vermelhas da confraria do Santíssimo Sacramento de Cem Soldos. São eles que organizam todos os preparativos do evento, como se de um momento iniciático para a vida adulta se tratasse. São eles que no final vão limpar as canas partidas que têm como destino o contentor do lixo.

A construção e ornamentação das canas é um bom pretexto para o convívio, dizem os populares. Juntos apanham as flores, cortam as canas, constroem as cruzes e as enfeitam com os pequenos ramos floridos.

No último domingo de Páscoa, antes de entrarem na igreja para cantar o “Aleluia” passam pela sede do Sport Club Operário de Cem Soldos onde recebem as amêndoas. No final a maioria, opta por partir as cruzes e os ramos no portal da igreja. Um gesto feito com bastante energia. É aqui que as opiniões se dividem. Para uns trata-se da libertação de Cristo de Cruz. No entender de outros, a vingança da sua morte, personificando a “A Matança dos Judeus”. Os que optam por não partir as cruzes de canas floridas irão depositá-las à tarde no cemitério, em homenagem aos ente queridos que já partiram. Canas de todos os tamanhos unidas pela mesma tradição, no mínimo, que prima pela desconformidade.


A verdadeira Matança dos Judeus
Em http://religionline.blog.com encontra-se a explicação da chamada “Matança da Páscoa” ocorrida em Lisboa em 1506. Reza a história que o país atravessava uma seca prolongada e surtos de peste. A 19 de Abril, na Igreja de São Domingos, alguém afirmou que vira o rosto de Cristo iluminado num dos altares, ao que outra pessoa terá dito que seria um reflexo do sol. Identificado como cristão-novo, foi imediatamente agredido e espancado até à morte. O rastilho estava pronto: um frade dominicano prometeu indulgências a quem matasse os hereges. Durante três dias, em plena Semana Santa cristã, Lisboa assistiu a pilhagens, violações, mortes e duas fogueiras improvisadas no Rossio e na Ribeira, com o rei e a corte fora da capital. Com o regresso do rei D. Manuel a Lisboa, os bens dos responsáveis foram confiscados, o frade instigador foi condenado à morte e o convento fechado durante alguns anos. Mas o massacre estava consumado.