domingo, 20 de julho de 2008

Guerra do Ultramar roubou-lhe o sonho de constituir família




Na vila-poema vive um ex-veterano de guerra que ainda não perdeu a esperança de, aos 58 anos, casar e ser pai. Para o efeito publicou um anúncio à procura de “um herdeiro”. Acto que se compreende depois de se ficar por dentro das linhas que teceram, até ao momento, a sua dramática história de vida.


Nascido e criado em Constância, José António Pereira, ex-veterano de guerra, procura aos 58 anos algo que nunca conseguiu até ao momento: uma família. “Não me custa estar solteiro, tenho pena é de não ter filhos”, explica este homem de meia-idade, bem-falante e educado. Recentemente publicou num jornal local um anúncio procurando uma companheira que esteja disposta a realizar o seu maior sonho. Em troca oferece 500 euros mensais. Ao longo da sua vida, foi o terceiro do género que mandou publicar mas, por diversas razões e circunstâncias, nunca teve êxito, isto apesar de ter recebido dezenas de respostas de pretendentes.
José António Pereira reformou-se da actividade de electricista há 23 anos e sofre há mais de 30 de distúrbio pós-traumático de stress de guerra. Esteve na guerra do Ultramar como radio-telegrafista, em Moçambique, entre 1972 e 1974. Estava lá há apenas seis meses quando a mãe morreu. Não pode assistir ao funeral e só um ano e meio mais tarde é que chorou junto à sua campa.
“A guerra estragou-me a vida toda. Se não tivesse ido à guerra, toda a minha vida seria diferente”, anuiu. Foi por causa da guerra que nunca casou ou teve filhos. Por causa da guerra que não quer saber de telemóveis ou telefones. Por causa da guerra encheu a casa de centenas de bibelots e recordações, de fotografias antigas, de colecções de todas as espécies e feitios. Por causa da guerra mandou afixar painéis de azulejos com diversas mensagens (Cuidado com o dono, que o cão está preso) na fachada da sua vivenda a que deu o nome de Narcisa (em homenagem á mãe) Paveia (em homenagem ao pai). José António Pereira chama-a de “O meu paraíso” e é ali que, sozinho passa grande parte do tempo de volta das suas memórias, só saindo para ir almoçar ou jantar na Santa Casa da Misericórdia. É ele que, sozinho, toma conta da casa e tenta tomar conta de si.
Os primeiros indícios da doença surgiram em Junho de 1974, poucos meses antes de regressar a Portugal. Não dormia. Nem de noite nem de dia. “Também não dizia coisa com coisa”, acrescenta. Acabou por ser internado num Hospital Psquiátrico. Regressa à metrópole em Outubro desse ano mas, segundo as suas palavras, ainda vinha pior da cabeça porque, já depois de sair do hospital, o tinham posto de sentinela à noite com a promessa que o regresso a Portugal seria mais rápido. De tratamento em tratamento, as melhoras nunca foram significativas. Já esteve internado algumas vezes num conhecido hospital de saúde mental de Lisboa, as duas últimas a seu pedido. “Estava sozinho, não tomava a medicação pelo que fui eu próprio a pedir para ser internado para ver se me ajudavam”, explica. Já conta 18 anos desde a última vez que foi internado e, desde então, leva uma vida solitária, entre as suas fotografias antigas, colecções de automóveis em miniatura, a paixão pelo Benfica

Memórias de um radio-telegrafista

“Esta noite não durmo. Quando falo nestas coisas é uma noite sem dormir mas eu conto”. E contou. Outubro de 1972. Comando de Defesa de Cabora Bassa, Moçambique. Lá fora assiste-se a um cenário de guerra. Numa pequena caserna há alguém que está responsável por um dos postos de transmissões, recebendo e enviando mensagens codificadas via-rádio. Ás seis da manhã, alguém pede socorro e ordem para evacuação. Há um soldado que levou um tiro no joelho e está a esvair-se em sangue. É emitida uma mensagem relâmpago. O resgaste deveria ser feito de helicóptero mas para evacuar o ferido para o Hospital de Tete era necessário um helicóptero-canhão para proteger o outro. Não havia nenhum e o piloto não quis ir sem resguardo. Ás três da tarde, altura em que estavam reunidas as condições para o resgate já o soldado tinha perecido, esvaido em sangue. “Uma coisa tão simples e morreu porque ninguém o socorreu. Sentia-me impotente para ajudar os outros e isso era desgastante”, conta José António Pereira.“Não andava a combater mas era pior que combater”, aponta.
Outro episódio que não esquece foi grave o acidente de jipe do qual saiu apenas com arranhões nas costas e nas mãos. Pior sorte tiveram os companheiros de viagem. “Um morreu porque lhe passou o pneu por cima. Outro, um guarda fiscal, ficou sem um braço”, recorda. Recorda ainda o ataque de que a Companhia e o posto de transmissões foi alvo, em 1973. “Cinco rampas de lançamento de foguetões dispararam a cerca de seis quilómetros do nosso quartel. A nossa sorte foi termos feito um abrigo, uma barraca de chapa ao lado da caserna de transmissões, porque já previamos que o quartel fosse atacado”, conta.
É por estas memórias e por outras que no jardim da sua casa pensa em instalar um monumento aos falecidos, deficientes e ex-combatentes da Guerra do Ultramar. Se por acaso passar por lá e estranhar o memorial lembre-se da história de José António Pereira.

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