quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

"Sinto que morri para o mundo"


Antonieta Monteiro sofre de esclerose múltipla

É uma jovem de sorriso aberto que nos recebe à porta de casa, na Hortinha, uma povoação isolada na freguesia da Junceira. Aos 32 anos, Antonieta Monteiro tem uma força invulgar face à partida que a vida lhe pregou: uma doença que a vai minando progressivamente e que para a qual a ciência ainda não descobriu a cura. Apesar de sentir que “morreu para o mundo e ninguém parecer importar-se com isso” o sorriso de Antonieta dá-nos a todos uma lição.

Se existem histórias de vida que impressionam até quem está habituado a ouvir histórias todos os dias, a de Antonieta Monteiro é uma delas. “Sou uma pessoa estranha... sinto que não sou nem nunca fui como as outras pessoas”, começa-nos por avisar, antes de contar como foram os últimos 11 anos da sua vida.
Antonieta era uma jovem como todas as outras quando, aos 21 anos, tudo mudou. Estava a terminar o bacharelato em Informática na Escola Superior de Gestão de Santarém e tinha acabado de regressar de Inglaterra onde tinha participado no intercâmbio Erasmus quando surgiu o primeiro de muitos surtos que a doença provoca. “Fui perdendo a visão gradualmente até deixar de ver... depois recuperei”, contou-nos. Esclerose múltipla foi o diagnóstico inicial que depois outros surtos iriam confirmar. Mesmo assim, conseguiu no ano seguinte terminar o bacharelato. Trabalhou numa loja de informática em Tomar e chegou a dar aulas. Depois pensou em candidatar-se ao ensino. “Para ter hipóteses de entrar no ensino sabia que tinha que tirar a licenciatura e por isso, mesmo com a doença, inscrevi-me”, refere.
“Esta é uma doença incurável do foro do sistema nervoso central que nos vai destruindo gradualmente”, descreve a jovem que confessa ter, actualmente, alguma dificuldade de se concentrar. Coisa que não se nota no seu discurso fluido e simpático, onde as palavras saem sem enganos. Apesar de também confessar que ali, no lugar de Hortinha, não tem muita gente com quem falar. “Passo os dias a falar com as plantinhas mas eu costumo dizer que elas não me respondem”, conta-nos a sorrir para depois dizer o que lhe vai na alma: “As pessoas não esperam que alguém na minha situação ainda tenha humor e diga piadas mas eu costumo dizer que sou do contra.... Não sei como ainda não endoideci aqui no exílio”.
O exílio, como lhe chama é a casa dos pais onde diz estar há 810 dias. Porque Antonieta conta os dias. Os dias desde que deixou Santarém, já no último ano da licenciatura de Informática a duas cadeiras de concluir o curso. “Nos serviços de Acção Social do Instituto Politécnico de Santarém acharam que eu já lá andava há muito tempo e cortaram-me a bolsa de estudo e o alojamento. Como o dinheiro não nasce no chão, não pude estudar mais. Pensava que vinha passar um mês a casa (o mês de Agosto durante a qual a residência de estudantes está encerrada) mas acabei por ficar no exílio”, contou
Com 25 anos e depois de muitos surtos começou a depender de uma cadeira de rodas ou “veículo” como lhe prefere chamar. “A escola comprou esta cadeira de rodas monitorizada... foram espectaculares comigo”, refere.
Mas de que lhe vale ter a cadeira de rodas se, à sua volta, não há infra-estruturas adequadas, pergunta. “Eu aqui não posso sair de casa e, mesmo que saia, vou para onde?... Em Santarém ainda aterrorizava os carros (risos) quando me deslocava na cadeira de rodas mas aqui nem isso posso fazer”, diz-nos. Ali, na povoação de Hortinha, não passam carros. Ali não passam pessoas. Ali nada acontece.

Um computador para a ligar ao mundo

Quisemos saber como faz para preencher o vazio dos dias. A resposta surpreende. “Não gosto de ver televisão e tenho dificuldade em ler porque a vista treme-me muito... mas não estou o dia todo parada, na cama, como se calhar devia estar”, refere.
Da Hortinha para o mundo não existe qualquer ligação. Se tivesse um computador – que deveria ser convenientemente adaptado às suas dificuldades – talvez lhe fosse mais fácil. “Tenho saudades da informática, de mexer num computador, apesar de ter um problema com as minhas mãos que gelam tanto que às vezes não as consigo sentir”, confessa. “Teria que ter um monitor grande e talvez o rato tivesse que ser substituído por uma dragball... eu teria que o experimentar primeiro”, adianta.
Mas nem é o computador o que mais falta faz na vida de Antonieta Monteiro: “É a falta de interacção social, de conversar com as pessoas... Sinto que morri para o mundo e ninguém parece importar-se com isso”.
Actualmente, Antonieta Monteiro “sai do exílio” uma vez por mês. “Vou fazer acupunctura a Tomar. Sinto que está a dar alguns resultados”, conta. É nessa vez que sai que mata saudades do mundo. “Esse dia tem que ser muito bem aproveitado”, diz a sorrir. Pragmática, a jovem lamenta a falta de acessos para as pessoas que necessitam de uma cadeira de rodas para locomoção que existem nos vários edifícios da cidade. “Faz-me confusão que em Tomar não existam infra-estruturas adequadas aos utilizadores cadeiras de rodas. É incompreensível, por exemplo, que o espaço Internet e a biblioteca municipal – espaços que se destinam para o público, não tenham rampas para deficientes. Acho estranho como é que ninguém pensou nisso”, desabafa.
Actualmente a jovem diz que já não tem sonhos. “Não há condições para sonhar”. Antonieta é assim. Chama os bois pelos nomes. Diz que há quem não goste que ela seja assim. Mas a sua forte personalidade é algo que não consegue esconder. “As pessoas não me compreendem mas, eu mesmo assim, vou continuar a ser como sou”. E mantém o seu sorriso franco e aberto. Mesmo quando todos estivessem à espera que passasse os dias a chorar.

O que é a Esclerose múltipla
A Esclerose Múltipla é uma doença inflamatória crónica, desmielinizante e degenerativa do sistema nervoso central que interfere com a capacidade do mesmo em controlar funções como a visão, a locomoção, e o equilíbrio, entre outras. Denomina-se Esclerose pelo facto de, em resultado da doença, se formar um tecido parecido com uma cicatriz, que endurece, formando uma placa em algumas áreas do cérebro e medula espinal.
Denomina-se Múltipla, porque várias áreas dispersas do cérebro e medula espinal são afectadas. Os sintomas podem ser leves ou severos, e aparecem e desaparecem, total ou parcialmente, de maneira imprevisível. É desmielinizante porque há caracteristicamente lesão das bainhas de mielina que envolvem as fibras nervosas, como se refere adiante. É degenerativa porque surge também lesão da própria fibra nervosa, por vezes irreversível.
A Esclerose Múltipla continua a ser um dos mistérios da medicina, não é uma doença evitável ou curável, embora neste momento já existam medicamentos que, apesar de não curarem, modificam de forma benéfica a sua evolução.

(publicado no Jornal O Templário)

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