terça-feira, 22 de janeiro de 2008

A persistência de um génio



Só mesmo um génio como Salvador Dali (1904-1989) para se lembrar de pintar uma obra com relógios derretidos, com a paisagem catalã em pano de fundo. Foi numa tarde de Agosto, no ano de 1931. Dali estava no seu atelier a petiscar, na companhia de Gala (a russa Elena Dimitriova Diakonova), sua primeira mulher e primeira grande paixão, quando pegou no lápis e nele enrolou uma fatia de queijo camembert, amolecido pelo intenso calor que se fazia sentir. Foi nesse momento que, num dos seus devaneios psicóticos, lhe surgiu a ideia de pintar “A Persistência da Memória”, um dos quadros mais frequentemente associados ao pintor surrealista. Dali demorou apenas duas horas a pintar esta obra e quando Gala viu este quadro proclamou, com alguma razão, que quem visse este quadro jamais o esqueceria. Em várias composições de Dali se constata este “delírio comestível” vocalizado por uma das suas, entre outras, frases célebres: “Sei o que como, não sei o que faço”. Dali evoca muito nas suas obras os conceitos “mole” e “duro” que, segundo o pintor, se resumem na fórmula “vida perfeita da morfologia degenerada”. O que é que isto quer dizer? Talvez só Dali o conseguisse explicar. Os relógios derretidos de Dali evocam a irrelevância e a preocupação humana com o tempo e a memória. Na minha opinião, uma preocupação com a vida, que escoa a cada segundo para um final do qual não há escapatória possível. Os relógios derretidos de Dali, representam a fragilidade da homem, na condição de ente humano, face à ditadura dos ponteiros do “senhor tempo”, da velhice para a qual caminhamos, da saúde que se “derrete” com o passar dos dias, meses e anos. Neste quadro é forte o sentido da limitação biológica. Entre o sólido e o mole os relógios hipnotizam todos aqueles que param um momento para reflectirem sobre a sua própria vida e o que fizeram com ela. Arrancamos as folhas do calendário, rumo à anciania, e vamos caminhando para uma altura em que o nosso próprio relógio está derretido e já não há maneira de o voltar a solidificar. O único consolo é olhar para trás e ver que não desperdiçamos o nosso tempo com futilidades. Ou melhor, que não desprezamos o nosso efémero tempo útil de vida. Que não vivemos a nossa vida em piloto automático, a obedecer às prioridades dos outros, esquecendo as nossas próprias ambições, os nossos próprios sonhos. Porque os relógios continuam a derreter a cada segundo e a memória dos tempos passados persiste para nos recordar isso mesmo.

publicado na Revista "Artes de Babel", Dezembro de 2003

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